O carnaval da minha janela

Quem gosta de crônica, o gênero que inventaram ser brasileiro até a medula, sabe que um famoso clichê a servir de muleta para quem está do outro lado da máquina de escrever é a paisagem da janela. Procure na obra de qualquer um dos grandes cronistas nacionais de qualquer época e você encontrará lá pelo menos uma crônica de janela, daqueles dias em que o assunto não está em canto nenhum da casa, do boteco ou do noticiário. Na rua passa sempre algo interessante ou, se não passa, a rotina é um tema irresistível.

No meu caso, peço perdão pelo clichê e vou em frente porque, creio eu, minha janela tem coisas a contar. Primeiro, ela emoldura uma paisagem já primariamente emoldurada por dois grandes blocos de concreto. Entre os dois edifícios minados de velhos microapartamentos como o meu, surge um estreito campo de visão que vai longe, até aquele morro cheio de antenas, do outro lado da cidade, que não é o Santa Tereza, embora seja muito maior. Clássico caso de injustiça geográfica, este majestoso morro que é avistado de quase toda a cidade ficou menos famoso do que aquele morrinho de nada às margens do rio, onde estão localizadas as emissoras de TV. Não adianta: tenha a mídia ao seu lado e – pronto – séras o morro mais famoso da cidade, mesmo sendo um morrinho de nada.

Antes do morro injustiçado, no entanto, está a rua, a velha República. Não é, tecnicamente, minha rua, já que a entrada do prédio se dá por outra. Mas é para onde dá a minha janela e é de onde vejo o mundo nos últimos três anos. De certa maneira, procuro metáforas no asfalto mal recapado da República. Por ali avisto tudo diariamente: os alagamentos, os mendigos cativos, as crianças indo para a escola pública (que parece conservar um ar de dignidade raro nestes tempos), jovens indo ao Teatro de Câmara Túlio Piva, trintões indo beber umas de pé no Ossip, todo tipo de gente entrando no Nacional e parando na fila do churrasquinho de gato da esquina. Por R$ 1,50, os moradores da Cidade Baixa saem dali mastigando aquilo que de mais próximo eles podem chegar de um churrasco bem feito, antes de entrar nos antigos adifícios construídos por engenheiros que não levavam em consideração a necessidade humana de assar uma carne no carvão. Alguns improvisam churrasqueiras de montar nas sacadas, mas, olha, já tentei isso algumas vezes na tal janela que dá pra República e esfumacei o andar inteiro. Minhas cuecas, mesmo na gaveta do armário, ficaram semanas cheirando a carvão – no que pode, também, ser considerada uma metáfora do cotidiano, levando em conta que aquela foi uma época muito pouco produtiva no campo afetivo e sexual.
Há muitas outras coisas que eu poderia falar sobre o que avisto diariamente na Rua da República – começando pela chaminé de um restaurante italiano, que, com seu jorro diário, contribui de forma decisiva para o cardápio variado do meu guarda-roupa. Camisetas a bolonhesa costumam servir de entrada para fantásticas calças jeans com escalopes ao molho de champignon. Superam em muito, especialmente em refinamento, as cuecas ao ponto saídas da churrasqueira. Sinto, de fato, que minha trajetória é ascendente em glamour e sofisticação neste quesito roupas defumadas.

Há, como eu dizia, muitas outras coisas, mas a que me motivou a escrever sobre a janela hoje foi o surpreendente bloco de carnaval que resolveu enfrentar a melancolia da folia urbana em plena segunda-feira de chuva para celebrar sob as garoa que molha o asfalto da República. Celebrar o que?, foi a questão que me veio à cabeça ao chegar do trabalho, enauseado, e deparar com a rua fechada para o trânsito, ouvindo um ruido de caixas de som vindo do fundo. Difícil compreender os motivos para que algumas poucas dezenas de pessoas se aglomerem ao redor de um pequeno conjunto de sambistas espremidos sob uma lona curta demais para proteger os tambores. A rua toda foi enfeitada com longos pedaços de pano coloridos, aproveitando a carona dos galhos das árvores e seu belo túnel verde para ir de uma ponta a outra do meio fio. Na calçada, vendedores de pipoca, refrigerante e senhoras oferecendo doces preparados em casa. Em frente à banda, principalmente crianças e mulheres dançando ao som de sambas e marchinhas antigas. Homens, alguns poucos, encostados nas árvores, apenas ao redor do bloco. No rosto da maioria, não parecia haver maiores motivos para dançar.

Há algo de profundamente melancólico no carnaval da Rua da República, provavelmente porque ele é uma espécie de ilha em meio à cidade vazia neste feriadão. Quem está por ali, é porque não pode escapar de Porto Alegre. Quem está ali provavelmente não está levando a vida que gostaria de levar. Dá para ver nos olhos do tocador de pandeiro que batuca de cabeça baixa, no olhar perdido de quem encostou sua bicicleta numa árvore ainda com a mochila do trabalho nas costas, chegando ou partindo para uma longa jornada. No mau humor do pai sendo arrastado pela criança. Em comum a todos eles, só a vontade de tomar chuva fina na cabeça e adiar a subida até o micro-apartamento de concreto. Tentar provar os benefícios da purificação que vêm com a garoa – a mesma que as calçadas sempre urinadas da República conhecem há anos. No meio do concreto sujo da rua, chuva lava a alma e esfria asfalto. Renova.

Um dia esta janela não será mais minha. É preciso mudar a paisagem de vez em quando, procurar metáforas em outras pedras. Difícil prever o que fica e o que vai de cada momento da vida. Mas desconfio de que o carnaval triste da Rua da República – mais do que as roupas defumadas – será uma dessas lembranças que ficam para sempre.

Revolutionary Road

Vi sim e achei tri bom. Só o que me parece ali é que há um sofrimento excessivo em função de um fator que hoje já não existe mais: a dificuldade em se divorciar. Não é incomum o casal revelar, depois de um tempo, interesses diferentes, como acontece no filme. A diferença é que hoje tu te separa quando percebe isso e pronto, tá resolvido. Eles não podiam.
A grande questão do filme, na minha opinião, é outra: o lance de optar ou não por ter uma vida convencional. Acho que ele põe em discussão o seguinte: é um erro (ou covardia ou incapacidade) ter uma vida convencional? Eu acho que não, e acho errado quem condena os que preferem algo mais convencional. É por isso que, embora eu me identifique mais com o personagem da Kate Winslet, eu me solidarizo muito mais com o do Leonardo di Caprio. O cara sabe que não tem nenhum talento excepcional, e talvez ele só seja bom mesmo naquela coisa burocrática. Quem pode condená-lo por isso? O erro é considerar pior uma pessoa que tem uma vida mais convencional.

Hoje há uma pressão da mídia na linha do “não seja apenas mais um no mundo”, “faça a diferença”, “você tem talento para ser descoberto”. A dura realidade é: a maioria não tem esse talento. A maioria nasce para ser só mais um. E isso não é ruim. A maioria das pessoas pretensiosas que eu conheço são medíocres. Continuariam apenas medíocres se tivessem orgulho de ser apenas mais um. Acabam se tornando medíocres e patéticas ao entrar nessas de que tem um talento escondido, de que são mais do que os outros.

Eu não estudei Direito ou Administração, não me casei e tive filhos aos 25, como boa parte dos meus amigos. Mas não os condeno nem os considero piores por isso, como a personagem da Kate Winslet faz de forma desprezível com o marido.

Mas, para falar do filme, acabei desviando o assunto que tu propôs. Voltando: de fato é um daqueles filmes que não fazem bem para namoro nenhum. Mais ou menos como o Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.

Boa noite, amor

Ela se confunde com o seu papel de parede cotidiano: o piso de parquet escuro do velho apartamento quarto e sala. Sabe que vou demorar, por isso, a enxergá-la. De propósito, me fita reto, seco, força o conflito do olhar. Seu corpo é da cor do chão, o casco brilha como o sinteco desgastado. Sabe que precisa mais do que as cores para que eu a veja. Então me olha firme, colocada no meio do quarto, sem medo, sem esconderijos, na esperança de que o olhar me atinja. E a nossa conversa telepática sempre acaba conectando. Mas não hoje. Hoje entrei no quarto correndo como sempre, estabanado como sempre, acendendo a luz e procurando a toalha molhada sobre a cama. Parei, num susto, no olhar da primeira barata deste verão, que se interpõe entre a cama e eu, agora congelado sob o bastidor da porta.

Elas demoram, mas sempre aparecem. Basta chegar o calor. Este ano demoraram mais. O horário de verão acabou no sábado, e até então o clima na casa era estranho. Nada de as baratas aparecerem. Há três verões seguidos, são companhia inestimável no silêncio do velho apartamento.

Como quem esqueceu das nossas conversas telepáticas e desta inestimável companhia, parto, trajado de maníaco das hawaianas, para cima da pobre. Ela tenta até o último minuto me persuadir com o olhar e com os pensamentos. Percebe, no entanto, minha falta de treino. Chinelada distante, um merda gritado alto, um chute na quina do armário que agora me rende um dedo sangrando e lá vai ela para baixo da cama, esperar que eu me deite e relaxe. Sentado no chão, apertando o dedo machucado, me pergunto por que fiz isso. Ela me olha sabendo que no fundo estou arrependido: sou grato pela lembrança e pela consideração, por ter aparecido no final do verão, mesmo que para uma conversa rápida. Ela percebe que estou tenso. Preciso de uma massagem. Talvez leia um pouco antes de dormir e a deseje um “boa noite, amor”, antes de apagar o abajur. Ela espera um pouco de gratidão por ter aparecido justamente nesta noite de terça-feira.